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quarta-feira, 27 de abril de 2011

Mulher: subjetividade e direitos Violência sexual: Há como reparar esse dano?

A situação da violência tem sido motivo de preocupações tanto por parte das autoridades quanto da população em geral, que atualmente a aponta como problema prioritário para as agendas políticas.
As cenas de violência contra a mulher já ganharam importância nacional e ocuparam, em passado recente, a tele-dramaturgia, o cinema, livros e outros meios de comunicação.
No campo dos direitos, poderíamos comemorar as mudanças, já que não existem do ponto de vista jurídico diferenças entre homens e mulheres desde a constituição de 1988. Entretanto mudanças ainda se fazem necessárias nas leis que compõe o ordenamento jurídico brasileiro, tanto o código civil quanto o código penal precisam acompanhar as discussões e avanços promovidos pela sociedade brasileira.
Se no campo do direito a reparação dessa injustiça se faz presente, o mesmo não se pode dizer no campo social, econômico e das relações como os homens.
No campo econômico, o trabalho no modo de produção capitalista passa a ser uma atividade não somente dos homens e sim de uma das classes segundo as quais se dá a inserção dos indivíduos no sistema social.
É na passagem para o capitalismo que as mulheres são incluídas como pertencentes à mesma classe social, a dos “trabalhadores”. Para o capitalismo todos são iguais, nas condições para a exploração da mão de obra.
Em princípio, conforme aponta Eagleton (2005), o capitalismo gera um credo impecavelmente inclusivo: a estrutura social não faz distinções para explorar. Além disso, nela se legitima numa admirável e igualitária disposição para incluir qualquer um, homem ou mulher, na rede dos “mercados”, na qual se pode mascatear produtos e serviços a um maior número de pessoas. (Viana e al 2006).
Embora saibamos que não é exatamente isso que acontece na realidade, pois não há igualdade neste tratamento, já que homens e mulheres têm salários diferentes para a mesma função e normalmente os homens têm salários melhores.
O exercício da violência assim pode assumir contornos simbólicos, sua expressão pode apenas se apresentar com as diferenças de oportunidades de ocupação de lugares na sociedade, seja no trabalho, na vida pública ou no acesso aos bens produzidos por essa sociedade.
Ainda assim é no campo das relações entre os homens que a vida fica mais complicada.
O tema da violência e sua percepção como quase inaceitável na vida social é algo da vida contemporânea. A expressão da violência já foi considerada e em muitas circunstancias ainda o é, um método socialmente aceito para a defesa pessoal, do patrimônio ou de valores ideológicos e morais, outras vezes, até supostamente éticos. No entanto esse método é cada vez mais criticado pela própria sociedade.
Os exemplos mais recentes são as justificativas que foram construídas para que o mundo aceitasse a invasão do Iraque e do Afeganistão. Sob a justificativa de se evitar a utilização de armas que pudessem molestar outros paises do mundo, e no segundo caso em defesa da própria população local de um governo autoritário e desrespeitador dos direitos humanos, os dois países foram invadidos, armas de destruição em massa foram utilizadas para atacar os supostos opressores, e uma matança sem fim ainda faz vítimas todos os dias naqueles paises, principalmente entre mulheres e crianças.
Se por um lado a sociedade procura coibir a violência entre seus membros, buscando o controle dos comportamentos, estabelecendo normas de conduta, por outro, na construção dessas mesmas normas, decidiu-se no Brasil, que as armas podem e devem continuar sendo comercializadas livremente. Alguns paises justificam essa decisão, com o jargão da democracia, é o caso dos Estados Unidos, incluindo ai o direito de utilizá-las contra outras pessoas. Assim é importante esclarecer que a violência está longe de ser um comportamento completamente injustificável, o que a humanidade tem feito é construir essas justificativas e regras para o seu uso. Elas se fazem presente sempre que a violência aflige mais de perto, seja porque fomos submetidos a ela por um assalto ou qualquer outro ato, seja porque julgamos necessário seu uso para coibir, reprimir, o seu próprio uso, ou a sua presença. (o caso do menino do Rio de Janeiro reacende a discussão sobre a maioridade penal)
A violência hoje se faz presente e na maioria das vezes é utilizada com um poder de destruição muito maior que em outras épocas. Nossa proteção pode estar na distancia que nos colocamos da cena. Não é preciso mais montar o cavalo, apontar a lança e correr em direção ao inimigo. O poder de fogo pode ser acionado à distancia, usando um controle remoto.
É importante afirmar então que não tratamos aqui de uma doença ou de algo que possamos simplesmente acabar com ela.
A violência estará presente em nossas vidas. Precisamos nos cuidar periodicamente, falar dela sempre, conversar e discutir sobre ela. Pois é na ausência da expressão que ela insurge como ato, como alternativa à falta de um discurso, de uma manifestação. Tentando dar significado a ausência da fala, do diálogo. Nossa relação entre os seres humanos sempre foi marcada pela violência.
No que diz respeito à violência contra a mulher, ou mais amplamente falando da violência de gênero, esta não pode ser tratada de outra forma.
Vale lembrar que a condição de submissão à vontade masculina já podia ser percebida dos textos mais antigos da civilização grega do séc. XIII a.C.. Em “Ilíada” a mulher aparece como espólio das guerras entre as cidades. Na Roma antiga, também aos vencedores eram distribuídas as mulheres para ficarem aos seus serviços. Durante toda a idade média, a mulher tem seu corpo escondido sobre as vestes sagradas, entretanto nenhuma condição diferenciada lhe é apresentada, não alcança nenhuma autonomia no campo da escolha quanto ao seu parceiro muito menos o momento que deseja o ato sexual.
Conforme Jacqueline Pitanguy é importante lembrar que a violência de gênero não tinha existência social no Brasil. A tese da legitima defesa da honra, fez historia em nosso meio, produziu, vídeos, livros, artigos, teses e até filmes. Deve-se lembrar que a naturalização da valorização do masculino em detrimento ao feminino está presente nas historias infantis, na proteção e valorização especial dada aos fetos de sexo masculinos, passando pela incorporação de leis, práticas que institui e reconhece essa desigualdade como natural nos diversos campos da vida pública e privada.
Assim sempre chamamos os meninos para as chamadas tarefas pesadas, e os desobrigamos das tarefas domesticas, assim como sempre chamamos as meninas para as tarefas domesticas e naturalmente desobrigamos aos meninos de se preocupar com estas questões. Formamos homens e mulheres para que tratem as relações sexuais de forma diferente. Educamos os homens para terem uma suposta necessidade biológica diferente das mulheres em relação ao sexo. Preparamos nossas mulheres para associar sempre o ato sexual com afetividade, amor, paixão. Controlamos as meninas quanto aos namoros, e deixamos os meninos à solta. E mais “nossa sociedade tem uma frase para isso, prenda suas cabritas porque meu bode está solto”. É assim que construímos os comportamentos de homens e mulheres, desde pequenos, nas pequenas coisas, sempre supondo que nossas mulheres são mais frágeis, que não sabem fazer coisas “de homem”. E sempre supondo que nossos homens são mais fortes, preparados, mais capazes de enfrentar situações as quais ele também não gostaria e que é considera um peso grande a carregar. Essas construções subjetivas forjam homens e mulheres, estabelecem papeis, que são desempenhados ao longo de nossas vidas.
Temos construído a partir da diferença biológica que define sexos um conjunto de valores, atitudes, normas e comportamentos, que são atribuídos a homens e mulheres, mas que não são naturais desses mesmos homens e mulheres. (PITANGUY, 2003) Aprendemos a ser homens e mulheres. Homens que não choram, e mulheres que não sobem em arvores. Homens que precisam de sexo, e por isso visitam e aprendem as virtudes do amor nas casas de prostituição ou com as ficantes e mulheres que devem guardar seu corpo para o seu amor, ou para seu príncipe.
Reparar o dano do ponto de vista jurídico seria fácil não fossem as dificuldades para o julgamento do caso numa sociedade que tratava até meses atrás esses crimes como de menor potencial de dano. Afinal a responsabilidade do agressor é clara. Resta à pessoa agredida, lidar com as conseqüências da experiência vivida. Entretanto, a multiplicidade de dimensões implicadas pelo prejuízo sofrido, a reparação suposta não se efetiva nem de forma parcial.
Alem da dificuldade de retomada da vida afetiva, do trabalho, dos estudos, temos observado que várias mulheres relatam um sentimento de culpa pelo acontecido. Sentimento esse que precisa ser compreendido no intricado relacionamento entre homem-mulher, macho-fêmea, masculino-feminino. Jurandir Freire (1984) conceitua culpa como uma resposta à uma infração do que se supõe seja uma norma reconhecida.
Qual infração Qual norma (estar ai, naquela hora naquele lugar)
Os seres humanos, assim como outros animais tem se esmerado para cumprir os rituais da sedução. Não há duvidas que homens e mulheres vão aos salões de beleza, compram roupas, cuidam do corpo, se vestem para os outros. São elementos que fazem parte da vida vivida por homens e mulheres.
O estupro nos trás para consideração as categorias sedução e perversão. Categorias subjetivas que apontam três elementos importantes: o direito feminino à sedução por “ser mulher”; a fantasia masculina (ela me seduz, portanto ela quer); e a real manifestação dessa fantasia em ato (o estupro em si), à revelia da escolha desse sujeito para o exercício do direito ao ato sexual.
Esses elementos nos ajudam a compreender que frases como a essa hora, nesse lugar e vestida desse jeito... apontam claramente para uma idéia que existe uma mulher que não deveria estar ali, - ah! Ai está a infração, (o que aponta ao outro o direito perverso de estuprá-la, afinal a construção do masculino aponta para a permanência, de maneira escamoteada, da representação antiga do direito do macho, como troféu, e que vestida daquele jeito denuncia sua condição de mulher que, por direito pode endereçar a sedução para quem quer que escolha, mas que naquele momento, naquela hora não havia endereçado ao estuprador, ainda que ele assim acredite.
Essa conjunção de elementos torna ainda mais sofrida as possibilidade de re-significação da cena e a retomada da vida. Temos percebido que o reconhecimento dessa trama é essencial para dar um novo significado para o acontecimento.
Tudo isso fica mais difícil quanto mais introjetado está os pré-conceitos, as dúvidas sobre a versão apresentada nas delegacias e serviços, as dificuldades de reconhecimentos dos direitos das mulheres de trabalhar, estudar, sair, namorar, dirigir suas energias para o que bem entenda e para quem deseje.
A violência então não se resume ao ato sexual roubado. Mas vai alem, passa pela desconfiança na historia contada por ela na delegacia ou no serviço de saúde, passa pela sua própria dúvida, se não deveria ter feito algo, já que a cobrança social impõe que ela tivesse feito algo para impedir o abuso. (talvez até não infringir a norma)
É difícil falar em reparação, e difícil pensar que um acontecimento desses pode ser esquecido. Entretanto ele precisa ser re-significado, o estupro precisa ser compreendido como responsabilidade social, sua descaracterização como ato particular, individual,(problema dela) permitirá essa mulher compreender que não se trata de uma culpa sua. Não houve infração. Pois não há infração no usufruto do direito constitucional de ir e vir a qualquer hora e vestida como lhe convier. Ou na verdade como exige o trabalho, a escola, pois é vestida desse jeito que a maioria se encontra que estão no trajeto para o trabalho ou para escola.

Toda violência como comportamento que precisa ser monitorado pela sociedade. Não pode ser tratado como natural. Coisa de homem, macho.
Tratar desse tema é comprometer-se com a construção de novas relações entre homens e mulheres. Apropriar-se dele, compreender a dimensão subjetiva desses acontecimentos e manter essa discussão é incluí-lo na vida vivida por nós homens e mulheres, é a possibilidade de construirmos relações solidárias, companheiras, afetivas, que nos permitam comportamentos sexuais muito mais felizes.
Não podemos, entretanto nos afastar de uma caminhada maior, como nos aponta Jorge lambrim,

“Mientras no construjamos uma sociedad igualitária e basada em el respecto y el amor, la mujer y tambiem los ninos seguirám siendo estructuralmente maltratados”

Obrigado,

Francisco José Machado Viana
Congresso Norte e Nordeste, Maceió, Maio de 2007

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